sábado, 28 de abril de 2012

O STRESS do século

Li, reli e gostei. Resolvi compartilhar com vocês:

Ação à distância, velocidade, comunicação, linha de montagem, triunfo das massas, Holocausto: através das metáforas e das realidades que marcaram esses cem últimos anos, aparece a verdadeira doença do progresso...
O século que chega ao fim é o que presenciou o Holocausto, Hiroshima, os regimes dos Grandes Irmãos e dos Pequenos Pais, os massacres do Camboja e assim por diante. Não é um balanço tranqüilizador. Mas o horror desses acontecimentos não reside apenas na quantidade, que, certamente, é assustadora.
Nosso século é o da aceleração tecnológica e científica, que se operou e continua a se operar em ritmos antes inconcebíveis. Foram necessários milhares de anos para passar do barco a remo à caravela ou da energia eólica ao motor de explosão; e em algumas décadas se passou do dirigível ao avião, da hélice ao turborreator e daí ao foguete interplanetário. Em algumas dezenas de anos, assistiu-se ao triunfo das teorias revolucionárias de Einstein e a seu questionamento. O custo dessa aceleração da descoberta é a hiperespecialização. Estamos em via de viver a tragédia dos saberes separados: quanto mais os separamos, tanto mais fácil submeter a ciência aos cálculos do poder. Esse fenômeno está intimamente ligado ao fato de ter sido neste século que os homens colocaram mais diretamente em questão a sobrevivência do planeta. Um excelente químico pode imaginar um excelente desodorante, mas não possui mais o saber que lhe permitiria dar-se conta de que seu produto irá provocar um buraco na camada de ozônio.
O equivalente tecnológico da separação dos saberes foi a linha de montagem. Nesta, cada um conhece apenas uma fase do trabalho. Privado da satisfação de ver o produto acabado, cada um é também liberado de qualquer responsabilidade. Poderia produzir venenos sem que o soubesse - e isso ocorre com freqüência. Mas a linha de montagem permite também fabricar aspirina em quantidade para o mundo todo. E rápido. Tudo se passa num ritmo acelerado, desconhecido dos séculos anteriores. Sem essa aceleração, o Muro de Berlim poderia ter durado milênios, como a Grande Muralha da China. É bom que tudo se tenha resolvido no espaço de trinta anos, mas pagamos o preço dessa rapidez. Poderíamos destruir o planeta num dia.
Nosso século foi o da comunicação instantânea, presenciou o triunfo da ação à distância. Hoje, aperta-se um botão e entra-se em comunicação com Pequim. Aperta-se um botão e um país inteiro explode. Aperta-se um botão e um foguete é lançado a Marte. A ação à distância salva numerosas vidas, mas irresponsabiliza o crime.
Ciência, tecnologia, comunicação, ação à distância, princípio da linha de montagem: tudo isso tornou possível o Holocausto. A perseguição racial e o genocídio não foram uma invenção de nosso século; herdamos do passado o hábito de brandir a ameaça de um complô judeu para desviar o descontentamento dos explorados. Mas o que torna tão terrível o genocídio nazista é que foi rápido, tecnologicamente eficaz e buscou o consenso servindo-se das comunicações de massa e do prestígio da ciência.
Foi fácil fazer passar por ciência uma teoria pseudocientífica porque, num regime de separação dos saberes, o químico que aplicava os gases asfixiantes não julgava necessário ter opiniões sobre a antropologia física. O Holocausto foi possível porque se podia aceitá-lo e justificá-lo sem ver seus resultados. Além de um número, afinal restrito, de pessoas responsáveis e de executantes diretos (sádicos e loucos), milhões de outros puderam colaborar à distância, realizando cada qual um gesto que nada tinha de aterrador.
Assim, este século soube fazer do melhor de si o pior de si. Tudo o que aconteceu de terrível a seguir não foi se não repetição, sem grande inovação.
O século do triunfo tecnológico foi também o da descoberta da fragilidade. Um moinho de vento podia ser reparado, mas o sistema do computador não tem defesa diante da má intenção de um garoto precoce. O século está estressado porque não sabe de quem se deve defender, nem como: somos demasiado poderosos para poder evitar nossos inimigos. Encontramos o meio de eliminar a sujeira, mas não o de eliminar os resíduos. Porque a sujeira nascia da indigência, que podia ser reduzida, ao passo que os resíduos (inclusive os radioativos) nascem do bem-estar que ninguém quer mais perder. Eis porque nosso século foi o da angústia e da utopia de curá-la.
Espaço, tempo, informação, crime, castigo, arrependimento, absolvição, indignação, esquecimento, descoberta, crítica, nascimento, vida mais longa, morte... tudo em altíssima velocidade. A um ritmo de STRESS. Nosso século é o do enfarte.
(Adaptado de Umberto Eco, Rápida Utopia. VEJA, 25 anos, Reflexões para o futuro. São Paulo, 1993).

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